Seguindo conselho de Henrique Bernardelli, Visconti havia prolongado ao máximo sua permanência na França. O professor, que mantinha permanente contato por carta com Visconti, aconselhou-o também a produzir “um bom número de quadros” para vender no Brasil e poder voltar à Europa. Mas este seria um conselho dispensável, pois Visconti, assim que chega ao Brasil, recebe a notícia da gravidez de Louise. E seu empenho em conseguir recursos para retornar à França é imediato. Logo organiza sua exposição de apresentação na Escola Nacional de Belas Artes, realizada ainda em 1901. Além de apresentar suas telas do período em que estudou na França (60 trabalhos de pintura, pastel e desenhos), expõe também 28 trabalhos de arte decorativa e de arte aplicada às indústrias, como resultado de seu aprendizado com Eugene Grasset na École Guérin.
O empenho de Visconti para o sucesso da mostra e sua convicção para que não houvesse distinção entre belas-artes e arte decorativa levam-no a idealizar a capa do catálogo ao estilo art-nouveau, na qual simboliza, através de uma roseira, as artes nascendo de um mesmo tronco. No entanto, o seu desapontamento com a indiferença do público e com a pouca repercussão do evento na imprensa ele expressaria muito tempo depois, em meio à entrevista prestada a Angyone Costa, publicada em O Jornal em 1926. O depoimento seria transcrito no livro A inquietação das abelhas, compilação organizada pelo jornalista, contendo idéias e aspirações de artistas brasileiros.[1]
“Quando regressei da Europa como pensionista dos cofres públicos fiz esta exposição na intenção de que a arte decorativa era o elemento maior para caracterizar a indústria artística do País. Olharam-me como novidade e nada mais. Cheguei a fazer cerâmica a mão, para ver se atraia a atenção das escolas e oficinas do Governo. Ninguém notou o esforço.”
No entanto, os trabalhos de arte decorativa expostos receberam alguns importantes incentivos da crítica mais especializada, destacando-se o longo artigo de Gonzaga Duque publicado em O Paiz. O texto do mais influente crítico de arte à época, embora predominantemente dedicado às pinturas, tece elogios incontestes à produção de arte decorativa de Eliseu Visconti e lamenta que as indústrias no Brasil vivessem na servilidade dos maus modelos vindos do estrangeiro, quando poderiam encontrar em Visconti um animador de seus produtos.[2]
As fortes palavras de Gonzaga Duque, ao classificar a exposição de Visconti como uma das mais completas, das mais importantes exposições de arte já franqueadas ao público, certamente incentivaram o artista a prosseguir nessa vertente de sua produção. Tanto assim que, naquele mesmo ano, Visconti participa do famoso concurso de cartazes para os “Cigarrillos Paris”, promovido pelo industrial Manuel Malagrida, em Buenos Aires, no qual, atraídos pela gorda soma de dinheiro em prêmios, inscreveram-se 550 artistas argentinos e estrangeiros. Sagraram-se vencedores do concurso Aleardo Villa e Leopoldo Metticowitz, ambos de Milão, sendo o terceiro prêmio atribuído ao catalão Ramón Casas. Apesar de não premiado, o cartaz desenhado pelo mestre do art-nouveau Alphonse Mucha para esse concurso tornou-se o mais conhecido. Outros dois brasileiros, Helios Seelinger e Belmiro de Almeida, participaram do concurso para o cartaz dos Cigarrillos Paris. O cartaz de Belmiro de Almeida, que concorreu com o pseudônimo “Briomel”, foi o único brasileiro premiado, colocado na 19ª posição com um prêmio de 200 francos. Está exposto no Museus d’Olot, na Catalunha.
Américo Ludolff, proprietário das Manufaturas Ludolff & Ludolff, tentou por diversas vezes que Eliseu Visconti se associasse à produção de cerâmica, chegando a aplicar desenhos de Visconti em algumas séries de sua produção. Alma rebelde, presume-se que Visconti não desejou estar vinculado a projetos comerciais.
Para Paulo Herkenhoff, as cerâmicas de Visconti têm uma dupla relação com o Japão: na decoração e na forma.
Visconti foi o mais japonista dos pintores modernos brasileiros. Seu envolvimento com a cultura visual do Japão afetou estruturalmente sua linguagem em alguns momentos cruciais de sua trajetória de pintor e designer.[3]
E o próprio Visconti, um colecionador de gravuras japonesas, anota em um caderno:
O conhecimento da arte japonesa ampliou nossa visão, refez o nosso olho, pois tem delicadas nuances as quais estávamos desabituados.[4]
Ainda em 1901 nasce Yvonne, em Saint Hubert, França, primeira filha de Visconti com Louise. Num caderno de notas, Visconti deixa o registro de cartas encaminhadas a Louise e a seu sogro logo após o nascimento da menina. Yvonne seria aluna e modelo de seu pai em diversas obras, dedicando-se à pintura e às artes decorativas e tornando-se artista de grande sensibilidade.
Visconti realiza em São Paulo sua segunda exposição individual, no salão nobre do Banco Constructor Agrícola, inaugurada em 8 de março de 1903 pelo então Presidente do Estado, Dr. Bernardino de Campos. Esta exposição apresentou a maioria das obras expostas no Rio de Janeiro, dois anos antes, e compreendia três seções: de pintura e desenho, de arte decorativa e de cerâmica artística nacional. Embora as matérias nos jornais tenham mostrado grande entusiasmo com o conteúdo da mostra e a crítica tenha reconhecido o grande valor da obra exposta, a sociedade paulista não respondeu à altura. O Correio Paulistano instava o público para que visitasse a mostra e adquirisse alguns de seus belos quadros.[5] No entanto, o comparecimento do público foi relativamente pequeno e apenas uma obra teria sido vendida, o que prejudicaria os planos de Visconti para voltar à Europa e estar junto à sua família.
No mesmo ano Visconti participa de três concursos de selos abertos pela Diretoria Geral dos Correios e organizados pela Casa da Moeda, num total de dezesseis projetos, sendo doze selos, duas cartas-bilhetes e dois bilhetes postais. O júri, presidido por Luis Betim Paes Lima, Diretor dos Correios, era constituído por literatos, filatelistas e pelo escultor Rodolfo Bernardelli. Dentre vinte concorrentes, Visconti é declarado vencedor dos três concursos, em janeiro de 1904. Entretanto, os projetos de selos postais jamais seriam executados, por ter-se oposto o Ministro de Viação e Obras Públicas, Sr. Lauro Muller, o que causou grande mágoa ao artista. Apontar uma razão para a não feitura dos selos seria mera especulação. A aceitação que tiveram por parte da imprensa especializada na Europa e na América foi comprovada pelo número de vezes que foram publicados. A revista francesa L’Illustration , em 12 de novembro de 1904, reproduziu com elogios todos os projetos. Também o jornal português Mala da Europa estampou os selos em sua edição de 18 de dezembro de 1904. Na América, a Sociedade Filatélica Argentina igualmente reproduziu os selos. E o mestre de Visconti, Eugène Grasset, de Paris transmitiu ao artista sinceros elogios, dizendo-lhe que seus desenhos em selos postais honrariam uma nação (Revista Kosmos, maio de 1907).
Nossa crítica especializada ficaria decepcionada com o não aproveitamento dos selos de Visconti. Gonzaga Duque escreve na Revista Kosmos:
Foi imensa a desilusão que sofremos com a sorte dos selos do Sr. Visconti; selos que nenhum país da Europa os possui tão perfeitos no seu valor artístico e, também (devemos dizer com veemência) no seu valor de aplicação, de especialidade.[6]
Um ano depois, na mesma revista, o mais importante crítico de arte à época voltaria a comentar: “A série magistral de postais do Sr. Eliseu Visconti faria a reputação filatélica de qualquer povo. É, em verdade, uma coleção extraordinária, sem competidora na reputada Europa”.[7]
Tendo sempre a mulher como protagonista, a quem Visconti representou com traços de simplicidade, inteligência e carinho, o artista colocou nos selos os fatos mais significativos da história do Brasil e homenageou ainda as artes, o comércio, a indústria, a correspondência, a energia elétrica e a aeronáutica. Também nas ilustrações e na propaganda, Visconti se aproveita sempre da qualidade decorativa do perfil e da cabeleira feminina, o pescoço inclinado e a face oval, as linhas curvas tão apreciadas na época.[8]
A mágoa de Visconti com a não confecção de seus selos o faria recusar terminantemente novo convite, em 1906, para apresentar projeto para a emissão especial de selos em comemoração à Terceira Reunião do Congresso Pan-Americano, que seria realizada no Rio de Janeiro. Apresentaram projetos de selo para esse Congresso os artistas também convidados Rodolpho Amoedo e Henrique Bernardelli (Revista Kosmos, maio de 1907).
Em cartaz criado em 1901, O Beijo da Glória a Santos Dumont, já havia Eliseu Visconti homenageado a aviação e o feito glorioso de Santos Dumont. Muito mais tarde, em 1947, a Campanha Nacional de Aviação, idealizada por Assis Chateaubriand, batizaria um de seus aviões, destinado ao treinamento de pilotos no aeroclube de Belém, Estado do Pará, com o nome de Eliseu Visconti. A incursão de Visconti pelo design gráfico incluiu ainda cartazes diversos, como os que projetou para a Companhia Cervejaria Antártica, e os estudos do emblema e do “ex-libris” para a Biblioteca Nacional, este último adotado ainda hoje nos livros da Biblioteca.
Retornando à Europa em junho de 1904, Visconti retoma sua atividade artística na capital francesa, freqüentando novamente a Academia Julian. Em 1905, expõe no Salão de Paris o retrato da escultora Nicolina Vaz de Assis que, com outros trabalhos que se seguem, tornariam Visconti apreciadíssimo como pintor de retratos. Para Rafael Cardoso, ganha destaque a inflexão peculiar dada por Visconti aos seus retratos: como arte de primeira qualidade e estudos psicológicos de grande densidade.[9] Sobre o retrato da escultora, cuja nobreza apaixonou o Salon de Paris, escreveu José Maria Reis Júnior:
Há nesse trabalho uma vida interior excepcional e uma representação realista impressionante, adquirida nos seus estudos de Velásquez, que fazem desse retrato uma das mais perfeitas obras de pintura do Brasil.[10]
Infatigável, Visconti executa várias telas de cavalete, dedicando-se à pintura ao ar livre, tendo como principal tema as paisagens dos Jardins de Luxemburgo. Maternidade, trabalho marcante de sua fase pré-impressionista e exposto ao público francês no Salão da Sociedade Nacional de Paris, surge como resultado de diversos outros trabalhos e pesquisas realizados em contato direto com a natureza.[11]
Em junho de 1905, Visconti recebe do Prefeito do então Distrito Federal, Engº Francisco Pereira Passos, o convite para executar as decorações do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O prefeito, que remodelou o Rio de Janeiro no início do século XX, não conhecia Eliseu Visconti pessoalmente, mas já apreciava os trabalhos do jovem artista, tendo pesado a favor de Visconti o fato de estar em Paris, acompanhando as inovações artísticas à época. Louise, indiretamente, exerce nova e decisiva influência na carreira de Visconti, pois sua presença na capital francesa tinha como principal objetivo estar com ela e com Yvonne, então com quatro anos de idade. Além de lhe proporcionar a execução do que classificaria mais tarde como sua mais importante obra, aquele convite lhe daria também as condições financeiras para ter sua família no Brasil.
O convite formal viria por carta do amigo comum Francisco Guimarães. O missivista seria Francisco da Silva Mendes Guimarães, cunhado do senador Joaquim Murtinho e padrasto de Laurinda Santos Lobo. Laurinda, sobrinha do senador, se tornaria uma das maiores mecenas das artes na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, recebendo intelectuais e artistas nas dependências do seu antigo palacete, no bairro de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro .
Visconti preparou o esboço para o pano de boca do Theatro Municipal, trazendo-o ao Brasil no início de 1906, por sua conta e risco. Aprovado pelo Prefeito, o estudo foi exposto na Casa Vieitas. Firmado o contrato em fevereiro de 1906, Visconti retorna a Paris para dar início à tarefa de maior responsabilidade de sua vida. Além do pano de boca, o contrato determinava também a execução das decorações do plafond (teto) sobre a platéia e do friso sobre o proscênio (acima da boca de cena). Em junho desse ano, mesmo estando em Paris, Visconti seria eleito para substituir Henrique Bernardelli na 1ª Cadeira de Pintura da Escola Nacional de Belas Artes.
Diante das enormes telas vazias, montadas no enorme atelier alugado que pertencera a Puvis de Chauvannes, em Neuilly, Eliseu Visconti foi tomado por sensação que lhe configurava como um misto de medo, ansiedade e profunda emoção, conforme relataria a Frederico Barata: “Tal sensação exige uma concentração de energias, só concebida por aqueles que se colocaram um dia no ponto inicial de um grande esforço ou tarefa criadora a cumprir”.[12]
Os trabalhos decorativos do Theatro Municipal estariam concluídos em 1907. O atelier alugado era o maior à época em Paris, mas, mesmo tendo cerca de 5 metros de pé-direito, obrigou Eliseu Visconti a dividir a tela em três seções que seriam pintadas separadamente, da parte superior para a inferior do pano. A seção inferior, exposta no atelier do artista ao final dos trabalhos em julho daquele ano, ainda em Paris, mereceu os maiores elogios da crítica francesa e os cumprimentos do Presidente Rodrigues Alves, que acabara de deixar o Governo e viajava com a família.
Contudo, longe de se tornar uma unanimidade, o pano de boca recebeu no Brasil elogios, mas também críticas contundentes, desferidas por alguns brasileiros que compareceram à exposição em Paris. Eliseu Visconti foi censurado por ter colocado negros entre os figurantes do povo retratados no painel, o que, segundo alguns críticos, nos diminuiria aos olhos dos estrangeiros que viessem a freqüentar o Theatro. Também a inclusão da figura de D. Pedro II foi criticada, por supostamente homenagear o regime monárquico. Visconti, firme na defesa do trabalho que realizara, colocava-se mais uma vez à frente de seu tempo, ao desafiar o preconceito, incluindo o negro na ornamentação da mais importante casa de espetáculos do País, que seria freqüentada à época pela elite da sociedade nacional.
O artista retorna ao Brasil em outubro de 1907, com o objetivo de orientar os trabalhos de colocação dos painéis no Theatro Municipal e assumir o magistério. Visconti pretendia que esses trabalhos estivessem concluídos em dezembro daquele ano, após o que voltaria à França para estar com Louise e Yvonne. No entanto, a colocação das obras no Theatro, tarefa complexa e inusitada, sofreu considerável atraso, o que afligiu Visconti e o levou a pedir a Louise que viesse imediatamente com a filha para o Brasil. Em carta de fevereiro de 1908, Louise responde a Eliseu:
Meu querido Eliseu
… Depois de tua carta de sete de janeiro, minha mãe e eu estamos bem angustiadas. Não sei que decisão tomar: ficar aqui ou partir para junto de ti, deixando aqui minha mãe na inquietude de saber que estaremos em um país desconhecido, tão longínquo para ela. Minha mãe, que já sofreu com a morte de papai… veja, eu não tenho coragem de lhe causar esse sofrimento. Por outro lado, Você está tão presente em meu coração e eu sofro também por não poder atender o teu desejo….
Em nova carta enviada uma semana depois, Louise mostra-se preocupada com o excesso de trabalho de Visconti e surpresa em saber que Visconti já providenciava, no mesmo prédio que abrigaria o atelier do artista, uma moradia para a família. O prédio de três pavimentos estava sendo construído em terreno adquirido da escultora Nicolina Vaz de Assis, situado à Av. Mem de Sá nº 60, no Rio de Janeiro. O atelier seria instalado no segundo andar, acima do apartamento destinado ao casal (primeiro andar), e de duas lojas no térreo, cujos aluguéis garantiriam uma renda extra.
O pano de boca foi colocado no Theatro em abril de 1908, mas Visconti não pôde ainda retornar a Paris. Havia tomado posse em março no cargo de professor de Pintura, na Escola Nacional de Belas Artes. Prosseguia na construção de seu atelier e da tão almejada morada para a família, que ficariam prontos somente em agosto daquele ano.
Nesse mesmo mês de agosto é aberta a Exposição Nacional de 1908, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, em comemoração ao primeiro centenário da abertura dos portos. A Exposição Nacional seria como que a apoteose de um período de interações econômicas e culturais do Brasil com um mundo cada vez mais urbano e cosmopolita, que teve nas reformas da cidade do Rio de Janeiro, aí incluída a construção do Theatro Municipal, uma das suas mais glamorosas expressões.[13] Visconti participa da Exposição Nacional com várias obras, inclusive com os estudos para o Theatro, obtendo o Grande Prêmio em Pintura e a Medalha de Ouro em Artes Aplicadas.
As inúmeras vezes que Visconti precisou comparecer à avenida onde se localizava o Theatro Municipal, para colocação do pano de boca, o teriam estimulado a pintar a tela Avenida Central, paisagem selecionada por Paulo Herkenhoff para representar a modernidade brasileira no livro 5 Visões do Rio na Coleção Fadel. Em pequeno trecho do seu ensaio, intitulado Eliseu Visconti, moderno antes do modernismo, Herkenhoff afirma:
“Visconti adapta desafios da pintura impressionista ao clima do Rio de Janeiro. Os efeitos meteorológicos enevoados de Avenida Central – um filtro de refração solar na atmosfera úmida – levaram à questão, ainda que distinta, da serração ou ruço da Serra do Mar, como na pintura de Visconti e Guignard, e dos efeitos da neve que estão em pinturas brancas de Courbet, Monet e Cézanne…. A pintura de Visconti é profética da implantação da inexorável modernidade que ocorreria no Rio como em outras cidades. Nessa ótica, Avenida Central foi e é uma pintura fundamental para se compreender essa entrada para a modernidade no Brasil.”[14]
Finalmente, Eliseu embarca para a França em novembro, oficializando sua união com Louise no dia 14 de janeiro de 1909, em cerimônia realizada na Commune des Essarts Le Roi. Volta imediatamente ao Brasil, aqui chegando no vapor Atlantique em 14 de março com sua família e instala-se no apartamento da Av. Mem de Sá. Mas em maio já procura outra residência. Louise queixava-se do calor excessivo no apartamento, situado abaixo do atelier castigado pelo sol que penetrava por uma clarabóia, projetada para boa iluminação. Certamente a nova gravidez de Louise apressou os planos de Visconti, que adquiriu um terreno na então Ladeira do Barroso (atual Ladeira dos Tabajaras), em Copacabana. Ali construiu a casa onde residiria com a família até seus últimos dias, em meio a frondoso jardim, de onde avistava a totalidade da praia de Copacabana e recebia a brisa do mar. Mais tarde, com a orla já tomada de prédios, Visconti se queixaria dos privilégios que lhe tinham usurpado. E lembrar-se-ia de quando, do jardim da casa, mostrava a ilha do farol ao seu filho, Tobias, trepado em seu ombro.
A inauguração oficial do Theatro Municipal ocorreu em 14 de julho de 1909. Não existe qualquer registro da presença de Visconti na cerimônia, que teve lugar na sala de espetáculos do Theatro, inteiramente decorada pelo artista.
Em janeiro de 1910, Visconti faz uma exposição individual na Casa Vieitas. Ele já havia exposto trabalhos seus nessa Casa, ainda como estudante da Academia de Belas Artes, em 1890. Voltava agora como artista consagrado, e o Jornal do Commercio anuncia a inauguração da exposição:
“O novo ano vai começar bem para o nosso meio artístico. No dia 10 de janeiro teremos já uma exposição de pintura, e exposição que agradará certamente aos mais exigentes. Trata-se de Eliseu Visconti, e dito isto, pouco mais resta a dizer… “[15]
Na mostra, Visconti apresenta pela primeira vez o Retrato de Gonzaga Duque, obra que alcançou grau de excelência sempre decantado por seus comentadores.[16] Expõe também, dentre outros, os retratos de dois amigos diletos, Alberto Nepomuceno e José Mariano Filho, e de seu irmão, Afonso d’Ângelo.
“Os retratos avultam no conjunto da obra de Eliseu Visconti. Mas coisa digna de nota, raríssimas vezes nesse gênero trabalhou sob encomenda. E isso porque para pintar um retrato, parecia-lhe indispensável conhecer o modelo ou sentir-se por ele atraído de algum modo, estimando-o, admirando-o, ou encontrando nele motivos de interesse pictórico.”[17]
A admiração mútua e a amizade entre Visconti e Gonzaga Duque estão expressas na correspondência trocada entre o artista e o escritor, por ocasião da vinda de Louise e Yvonne para o Brasil. A aproximação das famílias teria sido importante para a adaptação das duas francesas em um país estrangeiro, de língua e culturas diferentes, e numa sociedade bastante moralista.[18]
Tobias, o segundo filho de Visconti e Louise, nasce no dia 30 de julho de 1910, ainda no apartamento da Avenida Mem de Sá. Talvez emocionado com a coincidência do nascimento do filho no dia de seu próprio aniversário, Visconti marca a data, plantando uma mangueira no jardim da casa ainda em construção em Copacabana, para onde se mudaria com a família em dezembro daquele ano. Duas décadas após a morte do artista, a casa da Ladeira dos Tabajaras foi demolida para dar lugar a um prédio residencial. Por exigência de Tobias, o projeto do edifício previu um afastamento para preservar a mangueira, que hoje é centenária e ainda frutifica.
Dedicado ao magistério entre 1908 e 1913, Visconti tem como discípulos, na Escola Nacional de Belas Artes, Marques Júnior, Raimundo Cela, Isolina Machado Fanzeres, Guttmann Bicho, Agenor de Barros, André Vento, José Amarante de Oliveira, Georgina Barbosa Vianna, Angelina Agostini, Silvia Meyer, Adelaide Lopes Gonçalves, Fédora do Rego Monteiro Fernandes, João Batista Bordon, Oscar Boeira, Elaine Antonia Sanceau, Gaspar Magalhães e Henrique Cavalleiro, tendo este último se tornado seu genro em 1934 e notável pintor. Manoel Santiago também foi seu discípulo, mas somente mais tarde, em 1920, quando Visconti ministraria por três anos curso particular no atelier de Haydéa Lopes, na Rua das Laranjeiras. Haydéa se tornaria pintora renomada, passando a ser conhecida como Haydéa Santiago, após casar-se em 1925 com Manoel Santiago.
Visconti teve em realidade curtos períodos como professor, se comparados à sua longa carreira. Depois de seis anos regendo a cadeira de pintura, renuncia em 1914 a suas atividades na Escola de Belas Artes, onde não brigou para alterar os métodos de ensino, talvez se conformando com o fato de serem o meio e a crítica à época bastante refratários a inovações. São do período do magistério os painéis para decoração da Biblioteca Nacional, intitulados Solidariedade Humana e Progresso, executados em 1911, com a colaboração de Henrique Cavalleiro e Marques Júnior.
Visconti se apresentaria novamente ao público paulista ao final de 1911, na Primeira Exposição Brasileira de Belas Artes, realizada no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, ambicioso empreendimento para as artes plásticas brasileiras, levado adiante pela iniciativa privada paulista. Dentre outros trabalhos, expôs Maternidade, unanimemente considerada a tela mais valiosa da exposição. Depois de intensa campanha movida pela imprensa para sua aquisição, o governo paulista ofereceu um preço inferior ao pedido pelo artista e a venda não se concretizou de imediato. Mas, não se sabe em que circunstâncias, logo a grande tela seria adquirida pelo governo de São Paulo, fazendo parte atualmente do acervo da Pinacoteca do Estado.[19]
Em 1913, Visconti recebe nova encomenda da Prefeitura do Rio, agora para decoração do foyer do Theatro Municipal. Pretendendo executar o trabalho novamente em Paris, como fizera para as decorações da sala de espetáculos entre 1905 e 1907, tem que conciliar o novo trabalho com suas atividades de professor da cadeira de pintura da Escola Nacional de Belas Artes. Aparentemente, a única solução encontrada à época foi solicitar licença de saúde para poder viajar e ficar ausente pelo período necessário para execução dos trabalhos do foyer. A licença inicial por seis meses foi prorrogada uma vez, mas em 1914, não conseguindo nova prorrogação, Visconti não vê alternativa e solicita demissão do cargo de professor. Viaja em 3 de junho de volta à Europa no navio La Gascogne, com Louise, Yvonne e Tobias, fixando-se inicialmente em Saint Hubert, onde residia a família de Louise. Em Paris, inicia os trabalhos do foyer, num barracão construído em terreno alugado na Rua Didot. Abandonou o atelier de Paris por um período, enquanto perdurou a ameaça de invasão alemã da primeira guerra mundial, refugiando-se em Saint Hubert e Le Mans. Mas foi no atelier da Rua Didot que Visconti concluiu o trabalho.
Para execução da decoração do foyer Visconti voltou a empregar técnica impressionista, buscando harmonia ao conjunto da decoração do Theatro. Pois se no pano de boca características impressionistas estão presentes apenas ao fundo, no plafond (teto) sobre a platéia e no friso sobre o proscênio o artista já utilizara técnica divisionista.
No entanto, é marcante a evolução do artista, sendo a decoração do foyer considerada pelos críticos sua obra prima. A decoração é composta por um grande painel central, representando A Música, e por dois painéis laterais, menores, simbolizando A Arte Lírica (Inspiração Musical) e O Drama (Inspiração Poética).
“No foyer nosso artista se supera, sob todos os aspectos, considerando o conjunto de sua obra. Seu domínio absoluto dos valores cromáticos é patente em toda a composição. Sua pintura pontilhista nos surpreende pela leveza e pelo equilíbrio dos tons.”[20]
Concluídos os trabalhos, Visconti realiza em outubro de 1915, em seu atelier da Rua Didot, uma exposição dos painéis do foyer. E inicia seu regresso ao Brasil viajando de Paris para Lisboa em 27 de novembro. Na capital portuguesa embarca no vapor Oronza em 3 de dezembro, chegando ao Rio em 16 de dezembro. Os painéis do foyer não vieram com Visconti, sendo transportados no vapor Liger, que chega ao Brasil em 27 de dezembro. A família, já acrescida de Afonso, seu terceiro filho, permanece em Paris. Em plena guerra, mas com data marcada para a entrega, a viagem transcorreu sob ameaça de submarinos alemães, que logravam torpedear um em cada cinco navios aliados. Após a colocação dos painéis do foyer, concluída em março de 1916, Visconti retorna à França em abril daquele mesmo ano para juntar-se à família. É dessa viagem de volta o mais extenso relato do artista, dentre todos os encontrados em seus cadernos de notas. A ânsia em encontrar a família e o risco da viagem o teriam estimulado a registrar todos os incidentes e as reflexões a bordo do vapor Frisia, ele que em ocasiões como essa preferia o desenho. E o final desse longo registro expressa a importância da convivência familiar para Visconti:
“Chegamos a Paris segunda-feira às 8.25 da noite de 24-04-1916. Encontrei na estação Louise, Tobie e Costa. Seguimos para casa pelo metropolitano e às 8:45 estava abraçando Yvonne e Fonsinho. Jantei com grande satisfação e logo me deitei.
Havia quase um mês que não saboreava um sono tão profundo e uma vez mais na minha vida me julguei feliz de estar no meio da família, tudo me pareceu bom. Inclusive o tempo era magnífico.”
No mesmo período em que trabalhava no foyer e nos anos seguintes em que permaneceu na França, até 1920, Eliseu Visconti executou as paisagens impressionistas de Saint Hubert, por muitos consideradas, em conjunto com aquelas que seriam realizadas em Teresópolis, como o que de melhor o artista produziu. Para Mário Pedrosa, o mais influente crítico de arte do século XX, Visconti inaugura uma nova paisagem na pintura do Brasil. E o crítico vai além ao afirmar:
“Foi pena que o movimento moderno brasileiro, no seu início, não tivesse tido contato com Visconti. Os seus precursores teriam tido muito que aprender com o velho artista, mais experimentado, senhor da técnica da luz, aprendida diretamente na escola do neoimpressionismo.”[21]
Visconti e sua família viveram na Franca entre 1913 e 1920, alternando períodos de permanência no vilarejo de Saint Hubert e em Paris. Na capital francesa, depois de algum tempo no Boulevard Edgard Quinet, mudaram-se para Montparnasse, o bairro dos artistas, na Square de Lambre, nº 1. Seus filhos mais velhos já estudavam. Yvonne frequentava cursos de arte e Tobias fazia o primário. Com certeza, a presença da família em Saint Hubert era constante nos finais de semana, a se contar o número de paisagens que Visconti executou na pequena vila e, presume-se, a felicidade de Louise em estar com a mãe e os irmãos.
Mas – quem relata é seu filho Tobias – “o apartamento da Square de Lambre era ponto de encontro de artistas brasileiros: Dias Costa, Marques Junior, Turim, Cavalleiro, Magalhães Correa o freqüentavam assiduamente, sempre recebidos com ruidosa alegria”. E Tobias prossegue, agora para ressaltar o sentimento de brasilidade de Visconti:
“Devo mencionar a alegria quase infantil de meu pai, quando, nas ruas de Paris enfeitadas para alguma comemoração, dava com uma bandeira brasileira numa janela qualquer; parava, ria, todo contente, apontava-a para o resto da família. Em Saint Hubert, um de seus passatempos era ensinar-nos o Hino Nacional e o Hino à Bandeira; gostava especialmente deste último.”
Esse relato, datado de 1993, Tobias deixou por escrito, pois sabia como a questão da nacionalidade afligia Visconti, acusado diversas vezes de não ser brasileiro. Mesmo considerado o aspecto puramente formal, Visconti era por lei considerado brasileiro, pois na grande naturalização, que ofereceu a cidadania a todos os estrangeiros residentes, Visconti não se manifestou em contrário. Esse procedimento de naturalização tácita foi adotado pela Constituição de 1891, que considerava cidadãos brasileiros os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declarassem, até seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem. Como conseqüência, Visconti tinha em seus passaportes, e também na sua identidade, o registro de cidadão brasileiro.
NOTAS
[1] COSTA, Angyone. “A Inquietação das Abelhas”. Pimenta de Mello e Cia. Rio de Janeiro, 1927.
[2] DUQUE, Gonzaga. Revista Kosmos, ano II, julho de 1901.
[3] HERKENHOFF, Paulo. Catálogo da exposição Laços do Olhar – Roteiros entre o Brasil e o Japão – Instituto Tomie Ohtake – 2010, p. 45.
[4] Anotações manuscritas em caderno de notas, s/d. Ex. Coll. Eliseu Visconti Cavalleiro. Apud Irma Arestizabal. Eliseu Visconti e a arte decorativa. Rio de Janeiro: PUC-FUNARTE, 1982, p. 35.
[5] SERAPHIM, Mirian Nogueira. Eros adolescente. No verão de Eliseu Visconti. Autores Associados – Coleção Florada das Artes – 2008, p. 86.
[6] DUQUE, Gonzaga. Revista Kosmos, ano III, n. 5, maio de 1906. Apud Júlio Castañon Guimarães e Vera Lins. Impressões de um amador – Textos esparsos de crítica – Fundação Casa de Rui Barbosa – 2001, p. 247.
[7] Ibid, p. 254.
[8] ARESTIZABAL, Irma. Eliseu Visconti e a arte decorativa. Rio de Janeiro: PUC-FUNARTE, 1982, p. 38.
[9] CARDOSO, Rafael. In: Catálogo da exposição Eliseu Visconti – A modernidade antecipada – Retrato – Projeto Eliseu Visconti – 2012, p. 144.
[10] REIS JUNIOR, José Maria dos. História da Pintura no Brasil. Editora Leia – São Paulo, 1944.
[11] SANCHEZ, Maria José. Impressionismo Viscontiniano. Dissertação. Mestrado em Artes – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – São Paulo, 1982, p. 22.
[12] BARATA, 1944, p. 124.
[13] PEREIRA, Margareth da Silva. 1908, Um Brasil em exposição. Casa Doze – Rio de Janeiro, RJ, 2010, p. 9.
[14] HERKENHOFF, Paulo. Eliseu Visconti, moderno antes do modernismo. In: 5 VISÕES do Rio na Coleção Fadel. Rio de Janeiro: Fadel, 2009. p. 172-191.
[15] Jornal do Commercio (Notas de Arte). Rio de Janeiro, 16 dez 1909, p.7. Apud SERAPHIM, Mirian Nogueira. A catalogação das pinturas a óleo de Eliseu d’Angelo Visconti. Campinas, 2010. Tese (Doutorado em História da Arte) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade de Campinas. Orientação do prof. dr. Jorge Sidney Coli Jr. p. 235.
[16] SERAPHIM, Mirian Nogueira. A catalogação das pinturas a óleo de Eliseu d’Angelo Visconti. Campinas, 2010. Tese (Doutorado em História da Arte) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade de Campinas. Orientação do prof. dr. Jorge Sidney Coli Jr., p. 238.
[17] BARATA, 1944, p. 89.
[18] SERAPHIM, 2008, p. 83.
[19] ROSSI, Mirian Silva. Circulação e mediação da obra de arte na belle époque paulistana. Clique Aqui e realize uma consulta no site.
[20] FRANCISCO, Nagib. Vida e Obra de Eliseu d’Angelo Visconti, 1866-1944. Rio de Janeiro: Teatral, 2014.
[21] PEDROSA, Mário. Visconti Diante das modernas gerações. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 jan. 1950.